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Nascer em paz

Meio doula,

meio ativista

Ela faz do tempo do outro o seu próprio tempo. Quando o assunto é acompanhar parto, não importa se é dia, noite ou madrugada, ela levanta da cama e vai [em paz]. Metade doula, metade ativista, no dia a dia, Priscilla cuida das suas “buchudas”; milita em prol do parto normal em Fortaleza; e ainda vive o papel da mãe da Íris, de 11 anos, nascida de cesariana e da Rebeca, de 9, de parto normal. Mas isso é assunto pra depois.

 

“Doula não é parteira”, adianta. É quem dá suporte físico e emocional à gestante, mas não substitui um profissional de saúde. Está ali numa perspectiva de doação. Ela falou isso para justificar sua “doulice”, que começou em 2004, quando foi parturiente de uma lusitana. Era sua primeira gravidez. Na época, morava em Portugal.

 

De bebê no ventre e barriga de três meses, Priscilla acompanhou seu primeiro parto, lá d'além-mar. Daí em diante, não parou mais. De volta ao Brasil, não perdeu tempo, virou “ativista do parto”, presidente de ONG e doula em tempo integral. Com algumas horinhas dedicadas ao trabalho voluntário, vale dizer. Horinhas que se multiplicam em dias. Em uma vida inteira.

 

Foi no sofá de casa que Priscilla Rabelo nos recebeu, com sorriso estampado no rosto, tal qual o vestido floral que usava. Simples, entregue, honesta. Ela desbravou as amenidades do parto como quem fala da própria vida. Dessas confissões, nasceu este perfil:

A doula - Priscila Rabelo
Priscilla Rabelo acompanhando parto
Foto: Marisa Nogueira
Daniel Pinheiro (pai), Priscilla Rabelo (doula) e Vládia Samara (mãe)
Foto: Marisa Nogueira

O seu lado voluntário ocupa praças, shoppings e espaços públicos. Nesses locais, a doula esclarece os pormenores do parto natural para dezenas de homens e mulheres. Fala de contrações, de choro, mas também de amor. Do amor – de mãe e pai – que torna o nascer mais pacífico. Para informar, ela não cobra nada. Pois a sua missão de ajudar corre mais rápido que os ponteiros da ambição. É por amor.

 

Num tempo de enredos de guerra, militar pelo “nascer em paz” se impõe como prece. De centenas de mulheres-mães, que, feito Priscilla, carecem povoar o mundo de gente humanizada. Elas condicionam suas histórias à chegada do outro. Sem hora marcada. Nem tempo pra reclamar.

 

Com elas: só amor que abraça. Só olhar que apoia. E as mãos que sustentam a mansidão do nascer. Porque o “normal”, para elas, deveria ser nascer em paz.

Doula não é parteira. É quem dá suporte físico e emocional à gestante. (...) Está alí numa perspectiva de doação.

Por Darlan Araújo, Isabella Vasconcelos e Rafaella Girão.

 [Pusemos um gravador e dois celulares sobre o sofá e dissemos: já estamos gravando.]

Nós: A experiência do parto pode ser de paz?

Sim. A experiência do parto é de profunda paz quando ela é feliz. (...) Então, o parto tem que ser uma experiência saudável, antes de mais nada. E tem que ser uma experiência respeitosa, porque não adianta ter saúde e não haver respeito. Em que a mulher sinta seus desejos atendidos, na medida do possível. Se o parto tem saúde e respeito, automaticamente é uma experiência feliz.

 

[Ao relatar o momento exato em que nasce o bebê, Priscila fazia mímica para explicar os ritos do parto natural. Falava de contrações, de afeto materno, do nascer... tudo cor um rigor gestual quase religioso, digno de olhares atentos. Ela falava com as mãos, boca e olhos. Daí entendemos que a linguagem do parto ela domina de corpo inteiro.]

 

Continua... O que a gente vê no instante exato do nascimento é um momento de êxtase, que dura segundos, e que se segue de uma absoluta paz. Quando o bebê nasce, tem ali aquele momento que é uma explosão, depois a paz. É instantâneo. (...) Aquele momento é da família: é daquela mãe e daquele pai. Tem que ser uma coisa muito íntima. Então é, sim. É de profunda paz. Aí os casais choram, alguns só se olham... depois eles têm um breve momento de “para tudo”. E ai depende muito do casal. Às vezes esse momento é a três, outras vezes é a dois. Mas quando é uma relação muito bem resolvida, que estão todos ali muito juntinhos, ai você vê que há uma simbiose de três em um.

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Nós: Nessa história, onde entra a paz do bebê?

A mulher tem que estar tranquila. Por que mãe e bebê são um só. Se uma mulher está com um estado emocional alterado, aquele bebê fica alterado também. Durante o trabalho de parto, a ela precisa estar tranquila – não pode estar assustada, amedrontada, nem estar sendo acuada ou ser vitima de violência. Pois vai se refletir no bebê. Ele está ali vivendo no trabalho de parto as mesmas coisas.

 

No nascimento em si, o que vai dar paz pro bebê? Um ambiente acolhedor. Um ambiente de respeito. O que é o ideal? É que haja pouca luz. Porque ele vem de um ambiente escurinho. Então, se estiver num ambiente de iluminação reduzida, pro bebê não é agressivo. Ele já vai nascendo, vai abrindo o olhinho, porque ele vai se sentindo respeitado. O ideal é que não seja uma sala muito fria, porque o bebê vem de uma temperatura de 36, 37 graus, na barriga. Tem que ser um ambiente silencioso, não pode ter muita gente falando, arrastar de máquinas, bips e etc. Ao sair, o bebê tem que ir logo pro colo da mãe, porque é quem ele conhece: a mãe. Quando você o coloca no seio materno, ele levanta a cabeça, é instintivo. Ele se sente acolhido.

 

[No Brasil, mais de 80% dos partos, ainda hoje, são cesarianos. E são esses índices que as militantes do parto normal tentam arrefecer. Não por uma questão de melhoria das estatísticas, mas pelas mulheres. Por condições mais dignas no momento de parir.]

Nós: A cesariana é um tipo de agressão à experiência pacífica que a mulher pode vir a ter no parto?

Quando a cesariana é necessária, quando ela é bem indicada, também é uma experiência de paz. O procedimento foi criado justamente para momentos em que o parto normal não é possível, para a segurança da mãe ou do bebê, em alguns casos, de ambos. Se há uma situação de risco, e a cesariana é a opção mais indicada para resolver aquilo, então é paz. [Simulou um suspiro de alivio, para ilustrar.]

 

Agora, se a mulher não deseja passar por aquela experiência. Se ela é levada àquela situação, sabendo que não é necessária, mas, naquele contexto, ela não tem como evitar - porque não vai sair correndo do hospital, dizendo pro médico: “Tchau, adeus, não quero mais” -, é um tipo de agressão, sim. Foi o que aconteceu comigo (em 2004). Eu sabia que não era preciso. Eu fui chorando para a mesa de cirurgia. Então, pra mim, não foi uma experiência de paz.

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Nós: Você se sentiu agredida?

Sim. É uma violência. A cesariana desnecessária é uma violência obstétrica. (...) Tem muita mulher que vai pra uma cirurgia desnecessária e ela se sente profundamente agredida, porque ela se sente roubada. A experiência de parto normal foi roubada. O nascimento das minhas filhas (a primeira, cesariana, a segunda normal) foram experiências felizes. Mas, como mulher, pra mim, o parto normal foi incomparável. (...) Eu era a protagonista daquela história. Ela nasceu. Ela veio pra mim. Como mulher, foi muito rico, foi muito pleno.[Seus olhos brilhavam, cheios de verdade.]

Tem muita mulher que vai pra uma cirurgia desnecessária e se sente profundamente agredida, porque ela se sente roubada. A experiência do parto normal foi roubada. 

Nós: Quanto tempo dedica ao atendimento das suas “buchudas”?

Na minha maneira de trabalhar, a gente tem um contato de muita proximidade. As minhas “buchudas” sabem que podem falar comigo a qualquer hora do dia ou da noite. O último parto que fiz, cheguei na casa da parturiente (cliente da doula) meia noite e só sai depois das nove da manhã, no outro dia. Ninguém sabe a hora em que o menino vai nascer. O meu tempo é deles.

 

[Ela contou - toda derretida - histórias de gratidão de suas parturientes. Falou dos mimos que recebe. Das palavras de afeto. E dos inúmeros aniversários que é convidada. Tem até um estoque de presentes guardado em casa. Segundo Priscilla, os amigos já sabem a resposta, quando a convidam para sair: “se não estiver em parto, eu vou”. Como não é dona do próprio tempo, se programa de acordo com os horários dos nascimentos. Ou seja, na hora em que o bebê - e Deus - querem.]

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Relatos de amor e gratidão

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Nós: Como é ser expectadora desse momento tão importante para as mulheres?

[De sorriso aberto] É um privilegio enorme. É uma alegria muito grande. Porque você está como parte integrante do momento mais especial da vida de inúmeras famílias. Eu atendo uma média de quinze grávidas por mês. Veja a quantidade de histórias, de famílias, de sentimentos e de mil coisas que eu participo. Eu choro todo parto. Mas de maneira elegantemente. [Ela simula o choro contido. E rimos. Achamos que foi estratégia dela para conter a própria emoção.]

 

[As filhas interrompem para perguntar a senha do celular de Priscilla. Ela diz que é fácil e desenha na tela touch do smartphone. As meninas sobem correndo pro quarto. Neste momento, a mãe diz que elas são mini doulas; que “o pessoal chama, porque elas são profissionais em segurar os bebês”.]

Nós: Você faz partos de maneira voluntária?

Eu nunca digo pra ninguém que eu atendi alguém de graça. Eu atendo e ninguém sabe.  Primeiro, por que eu acredito no versículo bíblico que diz mais ou menos assim: se uma mão dá, que a outra não veja. Eu acho que é uma questão muito delicada. Se eu dei, acho que ninguém precisa saber. Eu tenho os meus critérios de escolha, muita gente pode não entender. Por isso, são casos pontuais. Eu vou atender agora uma moça, por exemplo, por que sei que ela queria muito! Eu sei que ela me quer. Eu sei que foi todo um planejamento que ela fez. Eu sei que o marido ficou desempregado. Ela ficou desempregada. (...) Então o voluntariado não é só a questão do dinheiro, é toda uma circunstância. Pra ela, eu sei, vai fazer toda a diferença. Essa escolha é muito subjetiva.

 

[Encerramos a entrevista (que mais pareceu uma conversa entre amigos) vendo fotos de partos no celular da Priscilla. As imagens sintetizaram tudo o que tínhamos ouvido naquela noite de terça-feira. E até mais. Porque a emoção genuína não se traduz em palavras. É algo que se lê com os olhos.]

 

De tão boa a prosa, não coube nos quarenta minutos combinados. Aí, de maneira consentida, pulamos para sessenta (uma hora). Também não deu. Fechamos, precisamente, em 01:32:33. Permita-nos a precisão para estimar tal encontro. Apesar dos acréscimos, restou a sensação de termos escutado quase nada.

 

O “até logo” se deu na cozinha da doula, onde ela nos ofereceu uma água [bem gelada, por sinal] e um sorriso. Se desculpou, poque sempre prepara "um bolinho, um suco..." para receber as visitas. Mas, aquele havia sido um dia corrido. No desfecho, três obrigados, apertos de mão à vontade e um monte de histórias legais pra contar. Saímos em paz.

 

 

Quem Somos

Sou Darlan Araújo, 26, aspirante a contador de histórias. O jornalismo, confesso, foi apenas pretexto. Para narrar o mundo e as várias memórias que repousam sobre ele. Sempre fui bom escutador. Curioso, na medida. Íntimo das palavras. Acho até que elas me escolheram. Conto o que vejo e escuto. Escolho cada sentença a dedo. Esse é meu jeito. Por pensar que toda narrativa merece rigor artesanal. 

Isabella Vasconcelos, 21, estudante de Jornalismo e estagiária na Comunicação da Vicunha Têxtil S/A. Amo trabalhar com a comunicação corporativa, pois isso me mostra um mundo de possibilidades. Antes de me conhecer pessoalmente, há três coisas que você precisa saber sobre mim: sou curiosa, visto a camisa do que me proponho a fazer e tenho como prioridade a gentileza, o companheirismo e a amizade. Se for para compartilharmos boas vibrações, pode se achegar.

Rafaella Girão, 27, quase "jornaleira com diploma", feminista assumida, material girl, fashionista e às vezes, digital influencer. Tia coruja do Tutu e da ElisaPig, bairrista no bairro Serrinha, nostálgica e o seu coração é alado.

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